terça-feira, 21 de setembro de 2010

Flanar e "A alma encantadora das ruas"...


Não queria sair do Brasil sem ler um livro verdadeiramente brasileiro. Li, num livro sobre o Rio de Janeiro que tinha trazido de Portugal, uma apresentação d'A alma encantadora das ruas, de João do Rio. Achei que era o livro indicado para mim. Achei que, pela descrição, podia ter sido eu a escrevê-lo - com uma escrita muito menos elegante e com muito menos para contar, mas com o mesmo fascínio pelas ruas e pelo que elas escondem.

Descobri, logo nas primeiras páginas, que o meu desporto favorito tem sido o flâneur. E que aquilo que tenho feito desde o primeiro dia e que algumas vezes acabo por partilhar nesta Selva não é mais do que flanar.
«Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e reflectir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...
(...)
O flâneur é ingénuo quase sempre. Para diante dos rolos, é o eterno "convidado do sereno" de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espectáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. (...) Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas.
(...)
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.

(...)
Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...»
 João do Rio, A alma encantadora das ruas

2 comentários:

Anónimo disse...

...e eu que não sabia que aquilo que gosto de fazer tinha um nome ;)

Obrigada por partilhares (e traz o livro!)

G.

Anónimo disse...

Há que tempos que eu era um flanador e não sabia disso...
Yaúca

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