Ontem fui a Castelo Branco ver um concerto do Sérgio Godinho.
Uma vez que após a minha estadia no Rio de Janeiro o público-alvo do blog alargou consideravelmente, é importante explicar que este conceituado cantor foi, nos tempos da ditadura em Portugal, um dos que usavam a cantiga como forma de intervenção na sociedade.
Um pouco à semelhança do que se passou no Brasil com Caetano, Gilberto Gil, entre outros, em Portugal houve cantores que se destacaram nessa época em que a censura era uma constante. Zeca Afonso é o cantor de intervenção mais conhecido em Portugal. Mas com ele aparecem uma série de outros elementos importantes, como José Mário Branco, Fausto, ou Sérgio Godinho.
Acontece que qualquer destes cantores contruiu uma carreira que foi muito além das canções políticas. O final da ditadura em Portugal deu-se já em 1974 e de lá para cá muito se escreveu, cantou, ouviu...
Nasce destes factos a minha preocupação com o concerto de ontem. É o terceiro concerto de Sérgio Godinho que vejo e, estranhamente, ontem ele optou por cantar músicas do pré 25 de Abril. Por que raio teria ele voltado a um repertório que incentivava a revolução, o final da censura, o ponto final na liderança ditatorial do nosso país? Porquê fazê-lo agora, quase 37 anos depois?
Ouvi a primeira canção de intervenção e estranhei. Depois veio a segunda, a seguir a terceira... Eis a razão do meu susto: as letras que há 40 anos atrás faziam sentido num regime ditatorial estão, hoje, completamente actuais.
Reparem apenas nestes três exemplos:
Liberdade (acho esta versão - que pelos vistos não é versão, mas sim o original - horrível, mas no Youtube não há a que ele canta actualmente. Concentrem-se na letra):
Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
http://letras.terra.com.br/sergio-godinho/498108/
Arranja-me um emprego:
Tu precisas tanto
de amor e sossego
e eu preciso de um emprego
se mo arranjares
eu dou-te o que é preciso
por exemplo o paraíso
anda ao deus-dará
perdido nessas ruas
vou ser mais sincero
sinto que ando às arrecuas
preciso de galgar
as escadas do sucesso
e por isso é que eu te peço
arranja-me um emprego
Arranja-me um emprego
pode ser na tua empresa
com certeza
que eu dava conta do recado
e para ti era um sossego
Se meto os pés para dentro
a partir de agora
eu meto-os para fora
se dizia o que penso
eu posso estar atento
e pensar para dentro
se queres que seja duro
muito bem serei duro
se queres que seja doce
serei doce, ai isso juro
eu quero é ser o tal
e como tal reconhecido
e assim digo-te ao ouvido
arranja-me um emprego
Arranja-me um emprego
pode ser na tua empresa
com certeza
que eu dava conta do recado
e para ti era um sossego
Sabendo que as minhas intenções
são das mais sérias
partamos para férias
mas para ter férias
é preciso ter emprego
espera aí que eu já chego
agora pensa numa casa
com o mar ali ao pé
e nós os dois
a brindarmos com rosé
esqueço-me de tudo
com o por-do-sol assim
chega aqui ao pé de mim
arranja-me um emprego
Arranja-me um emprego
pode ser na tua empresa
com certeza
que eu dava conta do recado
e para ti era um sossego
Se em mandasse neles
os teus trabalhadores
seriam uns amores
greves era só
das seis e meia às sete
em frente a um cassetete
primeiro de Maio
só de quinze em quinze anos
feriado em Abril
só no dia dos enganos
e reivindicações
quanto baste ma non troppo
anda, bebe mais um copo
arranja-me um emprego
Arranja-me um emprego
pode ser na tua empresa
com certeza
que eu dava conta do recado
e para ti era um sossego
http://letras.terra.com.br/sergio-godinho/498048/
O Charlatão
Numa ruela de má fama
faz negócio um charlatão
vende perfumes de lama
anéis de ouro a um tostão
enriquece o charlatão
No beco mal afamado
as mulheres não têm marido
um está preso, outro é soldado
um está morto e outro f´rido
e outro em França anda perdido
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga
No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Na travessa dos defuntos
charlatões e charlatonas
discutem dos seus assuntos
repartem-se em quatro zonas
instalados em poltronas
P´rá rua saem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca de alguns patacos
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
Entre a rua e o país
vai o passo de um anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão
Entre a rua e o país
vai o passo de um anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão
É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
http://letras.terra.com.br/sergio-godinho/498125/
Não vou eu estar a analisar os poemas verso a verso. Acho que está bem claro para quem neste país vive que, infelizmente, isto é bem mais actual do que nós desejaríamos.
Mas reparem:
" Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir, quando pertencer ao povo o que o povo produzir." - de tão evidente que é, torna-se inútil explicar a relação com a actualidade, não acham?
O mesmo se pode dizer do charlatão. Começa no título e acaba em abracadabra. Um hino ao Portugal dos nossos dias.
E, finalmente...
" Arranja-me um emprego, pode ser na tua empresa com certeza que eu dava conta do recado e para ti era um sossego. Se meto os pés para dentro a partir de agora eu meto-os para fora. Se dizia o que penso eu posso estar atento e pensar para dentro. Se queres que seja duro muito bem eu serei duro, se queres que seja doce serei doce, ai isso juro." - não é isso mesmo que nós, recém licenciado, estamos a fazer? A fazer tudo por um emprego que tão difícil de assegurar se afigura? A trabalhar as horas que forem precisas para garantir a ninharia que ganhamos ao fim do mês? Se for preciso sermos duros nós sê-lo-emos, se for preciso sermos doces também. Tudo porque precisamos de um emprego...
(E, pensando bem, não estaremos nós mesmos a arruinar o nosso futuro? Ao aceitar trabalhar em péssimas condições, a recebermos uma quantidade ridícula de dinheiro e... a tirar o emprego aos que estão há mais tempo nas empresas e que, como tal, se recusam a ser explorados? E quando, um dia, casarmos, tivermos filhos e não tivermos tempo nem forças para trabalhar da forma que trabalhamos? Começaremos a reivindicar os nossos direitos? Pois nessa altura virão outros fazer aquilo que nós fizemos um dia para assegurar o emprego... e já se sabe onde nós acabaremos!)
E agora digam-me se não é triste e assustador
eu ouvir um concerto com músicas feitas para
o tempo da ditadura e sair de lá
com tendências revolucionárias...