Da boca de Mariana fluía o mundo. Uma torrente de mundo.
Por exemplo: os vinhos de Bordéus nasciam da boca madura de Mariana:
- Um dos melhores percursos é agarrar a estrada de Langon, para sudeste. Na altura das vindimas, quando a parra já se emborrachou de sol, o senhor vai conduzir através de umas cores quentes, umas cores de Van Gogh, enfim, de Gauguin, não interessa. (Já conhece Arles?). O verde enche-se de amarelo. O dia apenas tem os tons da tarde. Quase se pode cheirar o vinho, e ainda nem ele existe! É verdade, quase se pode cheirar o vinho, olhando esse amarelo que aquece as vinhas. Faz calor, mas é menos do verão do que das cores. Se for por Villenave d’Ornon, atravessará as vinhas de Cérons, Barsac, Loupiac e Sauternes, terras de brancos doces — além, claro , das vinhas de Graves, onde também produzem tintos. A maior parte dos Bordeaux são tintos, mas aproveite esse percurso para estacionar nos brancos doces. Eu prefiro os tintos — de qualquer parte —, mas os brancos doces têm uma elegância que justifica a despesa. (A propósito, vá preparado: em Bordéus não se paga apenas o vinho, mas também a fama. Há garrafas que são mais fama do que vinho, na verdade.) Experimente. São vinhos de ouro, entende?, com taninos de mel, tília e acácia. Escorregam bem com uma sobremesa ou com um queijo. Ou, se lhes der um pouco de frio, poderão fazer um aperitivo delicioso. Claro que você vai andar nos tintos a maior parte do tempo e da estrada. Para uma garrafeira, os Médoc e os Graves envelhecem muito bem. O Libournais também. Já provou Libournais? Mas isso fica noutra estrada. Se atravessar a Garonne pela N89…
Rolávamos através de Berlim
(Mariana é taxista),
sentido Alexanderplatz, sentido Nascente, sentido Leste, sentido História,
- Então o meu amigo quer ver o Muro? Vamos a Mühlen Strasse, esta é a melhor hora para apreciar os painéis dos artistas, embora não seja a melhor hora para fotografar, porque o sol está a cair a Ocidente e, naquela rua, a esta hora, o muro fica em contraluz, está a perceber?
Por exemplo: os perigos de Lahore apareciam na boca vermelha de Mariana:
- Não se fie nos polícias! Em toda a gente, menos na autoridade. Olhe que são os polícias mais corruptos do Paquistão. Pelo menos com turistas. Imagine a ciência daqueles tipos: você chega a um dos “hotéis” baratos da cidade velha — é onde os estrangeiros acabam todos por aterrar —, descarrega a mochila e o sono, pede um quarto e um duche e o rapaz da recepção estende-lhe uma chávena de chá, “grátis”, ou até duas, ou três. Quantas chávenas você quiser beber, você — que já vem moído e esfomeado de Nova Deli, porque, se não gostar de fritos nem de picantes, passou uma fome daquelas, para não falar na diarreia e nos percevejos no Ricky’s Inn, que é onde ficam os mochileiros mais encardidos do Ocidente. Simpático, isso do chá, não é? O problema é que o gajo, que está feito com a polícia, deitou um tranquilizante no seu chá e você cai redondo a dormir. Quando acorda, tem o quarto cheio de polícias de bigode e farda castanha, furiosos consigo, porque você é um drogado e veio para Lahore, para o Paquistão — para a “Terra dos Puros”, é isso que o nome quer dizer —, à procura de heroína barata, ou de coca, ou de outra pasta qualquer. Você começa a enlouquecer, tenta defender-se, explicar que nem sequer fuma um vulgar cigarro, mas eis que um agente encontra a prova do crime: um saquinho! Um saquinho de pó! Na sua mochila! O que está um saquinho de pó a fazer na sua mochila? Hum? Responda! Responde! Você vem de Peshawar? Vai para Peshawar? Onde fica Peshawar? A esta altura, você já levou um estalo. E depois outro! Você nem percebe de onde é e para onde ia. Eu explico, porque o tempo é precioso nesta situação: você caiu numa armadilha. Levam-no para a esquadra, fecham-no numa masmorra e, a menos que você pague a sua libertação, não sairá de lá tão depressa. Por isso, pague, pague o mais possível e o antes possível, pague o que lhe pedem antes de ir para a esquadra, porque quanto menos polícias tiver que “comprar”, e de menor patente, mais barato lhe fica. Lahore é uma cidade incrível — e não é pelo Museu Nacional, onde trabalhava o pai do Kipling . É pela fortaleza e pelas ruas estreitas da cidade velha. Pela mobília de cheiros nessas ruas. E pelas mesquitas. Ah, as mesquitas: a de Wazir Khan, uma pérola!, e a de Badshahi Masjid, do século XVII, imponente. Meu amigo: tenha cuidado com a polícia e veja bem onde fica instalado. Evite o bairro da estação. É mais barato mas é lá que a corja monta a ratoeira.
Ou, ainda um mero exemplo, a Ilha de Moçambique brilhava na boca doce de Mariana :
- Não sei se ele ainda é vivo, mas havia um padre, não me recordo… sim, o padre Lopes, na Ilha. Ele tinha uma casa perto da estátua do Camões, ou antes, entre o Camões e o Cine-Teatro Nina. Digo-lhe a si, meu amigo: não venha de lá sem ouvir o coro do padre Lopes. Você vai chorar, mesmo que não tenha fé, mesmo que não seja cristão, se for humano vai chorar. Peça um “pai-nosso” macua, assista à beleza das vozes, limpe a alma, se a estrada de Nampula tiver deixado alguma alma em si. Depois, vá lavar os olhos na água verde que está virada para o Ilhéu de Goa (dizem que, em certas noites, se pode ver o clarão das Comores). Não se esqueça de olhar por onde anda e por onde pisa: continuam a dar a essa praia, batida pelas correntes do Índico (séculos e séculos de correntes subterrâneas, de marés), pequenas contas coloridas, carregadas nos porões dos galeões das Índias. Há muitos galeões afundados ao largo da Ilha. Além das contas, os barcos carregavam escravos. São lindas, as contas coloridas. Fazem colares lindíssimos — os mais caros, os de tons azuis. Se quer acomodação com vista para o oceano, tem a Casa Branca, mesmo no largo do Camões. É limpa, barata, espartana, e, ainda assim, nobre — trata-se de um antigo sobrado colonial. Pergunte pela dona Flora. Diria que a Casa Branca é a melhor oferta da Ilha: bed&breakfast&silêncio. Para esquecer — na Ilha há sempre um momento para esquecer —, mude de costa, atravesse os arcos da Alfândega e entre no Relíquias. O gin é verdadeiro, os bolinhos de camarão apetitosos. Os piratas, as sereias e os mercenários que entram directamente da praia para a esplanada, são igualmente genuínos. A Pousada foi recuperada, sem grande gosto, mas come-se bem no restaurante — bom marisco, bom peixe, bom serviço. O senhor é do Sporting? Havia um Sporting na Ilha. Resta um leão partido, em alto-relevo, numa das paredes em ruínas do clube, ali ao lado da Pousada. Pode fazer campismo, do lado do continente, à entrada da ponte. Pergunte pela Lena. A Lena “Brasileira”.
Rolávamos através de Berlim, sentido, por exemplo, fronteira polaca, Frankfurt-no-Oder, sentido Varsóvia,
- Já esteve em Varsóvia? Não vale a pena ir lá, a não ser que se esteja interessado em mulheres. O “centro histórico” mete dó, a cidade foi arrasada na Segunda Guerra, entende? As mulheres são muito bonitas. Realmente são muito bonitas. Posso aconselhar-lhe uma menina, a Felicita, muito jovem mas de grande… maturidade, se me faço entender. Mas, se não quiser o meu conselho, basta escolher um dos folhetos e cartões de visita que, durante a noite, vão colocar-lhe no alto da porta, entalados no caixilho. Caem-lhe em cima, de cada vez que você abre a porta — digo, os folhetos.
Sentido Kaliningrado,
- Resta pouco para apreciar na cidade, mas reconstruíram a catedral alemã de Köenigsberg (era o nome da cidade antes de 1945, centro da Prússia Oriental que a Alemanha perdeu depois da guerra). É mais interessante, no entanto, o Museu Kant — o homem nasceu lá e está enterrado nos arredores da cidade — e o Museu do Âmbar.
Sentido, porventura, Moscovo,
- Recomendo-lhe vivamente os banhos de Sandunovskyie, nas vielas da parte Norte da cidade. São banhos do século XIX. Continuam segregados. O que me parece mais interessante é a possibilidade de qualquer cliente beber cerveja até cair, sem sair dos banhos de vapor, das salas de massagem, das piscinas.
Rolávamos e o mundo criava-se da boca de Mariana. Enquanto passávamos no palácio de Charlottenburg, Mariana falou de um barco na perigosa fronteira de Iquitos, na Amazónia colombiana. Depois, por alturas das Portas de Brandenburgo, descreveu motéis e paisagens numa estrada melancólica pela costa do Oregon, nos Estados Unidos. Mais adiante, aproximando-nos do antigo parlamento da RDA (em processo de desmantelamento), encontrou pretexto para uma ida às compras em Hong Kong e debitou uma listagem exaustiva dos melhores bungalows da Tailândia. “Sem o ruído de Anjuna, em Goa, nem o pretensiosismo budista de Bali, na Indonésia”. Haveria mundo que ela não conhecesse? Haveria país que não tivesse visitado? Haveria viagem que Mariana não tivesse feito?
- Eu nunca viajei . Eu nunca viajo.
Dei um pulo no banco. Da boca de Mariana, da boca trocista de Mariana, brotou um sorriso sem alegria. Como assim, Mariana? Uma taxista portuguesa em Berlim viajou, pelo menos, de Portugal para a Alemanha.
- Eu nunca viajei. Só saí da minha cidade uma vez — para Berlim. E não foi uma viagem. Foi uma emergência. Uma missão.
Mariana veio a Berlim resgatar um amigo. Um dos seus melhores amigos. Disse-me, com alguma emoção, que o que pretendia da vida era cuidar dos seus amigos. Aprender com eles. Guardá-los dos perigos do mundo, com zelo, ao mesmo tempo aprendendo a partilhá-los, para que esses amigos, voltando os mesmos, voltassem melhores, para que eles crescessem.
- Um bom guia é melhor do que a melhor das viagens. Sabe sempre mais, sabe sempre tudo, porque tudo lhe foi ensinado antes da nossa partida. É por isso que partir não é preciso.
É por isso que Mariana não parte. Precisei de alguns minutos para perceber que o grupo de amigos de Mariana estava todo na sua estante, aliás, em várias estantes, por serem muitos, por serem cada vez mais: os seus amigos mais próximos eram guias turísticos. De todo o lado, de todas as categorias, para todos os gostos, para todas as bolsas. Guias que levavam Mariana, pela mão — e sem sair de casa! —, através das estradas mais perigosas dos Andes ou pelos hotéis mais luxuosos da Ásia, passando nos melhores museus de Nova Iorque, nas melhores salas de fumo de Marrocos, nas ilhas mais remotas do Adriático.
É preciso contar a história desde o início. Mariana contou-me: no início, começou a coleccionar catálogos de agências de viagens. Passou a ser uma presença assídua nas agências da sua cidade. Era uma cliente sazonal: passava sempre para recolher a informação, embora nunca comprasse nenhuma viagem. Habituaram-se a ela e guardavam-lhe catálogos específicos, catálogos que vendiam caminhadas pelos planaltos do Nepal, passeios a cavalo através da Terra do Fogo, cruzeiros no barco postal ao longo dos pequenos portos da costa norueguesa, ou programas em requintados oásis no deserto egípcio. Coisas simples, esses catálogos.
- Não era um atavismo. Era por falta de dinheiro.
Aos poucos, a exigência foi subindo. Mariana fartou-se das fotografias de praia e coqueiro, da superficialidade do turismo de gado, dos destinos tropicais e das férias na neve. Foi então que passou a estudar, a comprar guias turísticos.
- (Roubei alguns, claro, mas roubar leitura não é crime, é fome de cultura.)
Disse-me que a viagem era uma necessidade literária, não uma necessidade de movimento. Mariana adquiriu, rapidamente, um conhecimento do mundo, digamos um cosmopolitismo, proporcional à experiência dos seus guias. “Viajou” em detalhe e em profundidade por muitas cidades. “Conheceu” os hotéis, a gastronomia, a noite, os acessos, os monumentos, os truques, os bordéis, as irritações, as sugestões, as anedotas, as paisagens, os costumes, os segredos, farrapos de cultura. O vício dos mapas veio por arrastamento. Mariana reuniu um acervo cartográfico impressionante.
Outros amigos, amigos de verdade, ou melhor, de carne e osso, amigos com o fútil hábito da viagem,
- Uma ilusão, está a compreender?, uma vaidade,
começaram a recorrer a Mariana para preparar as suas férias, onde quer que fossem. Era Mariana que lhes emprestava os guias. Pareceu-me que este empréstimo não era desinteressado. Por um lado, uma parte de Mariana viajava, efectivamente, com as pessoas a quem ela emprestava os seus guias; era, por isso, em Mariana que eles teriam que pensar, fosse apenas por um instante, quando folheavam o guia à procura de direcção, de comida, de transporte, de informação — ou de companhia. Por outro lado, o guia, sabedoria detalhada do real, mais real do que a realidade, ganhava algo em cada saída que efectuava: os guias são a sabedoria antes da experiência,
- E por isso são perfeitos,
mas a experiência, exercitando a sabedoria, acrescenta algo de legitimidade, de maturidade, algo que renova, ilumina e justifica a sabedoria original,
- E não me refiro às anotações que sempre acrescentavam aos meus guias. Refiro-me a uma personalidade do livro. Uma… aura. A aura da viagem autêntica. Eu conheço a viagem dos outros — antes mesmo de eles a realizarem.
O que Mariana quis dizer é que, fizessem o que fizessem, a viagem dos seus amigos já estava inscrita na viagem que ela tinha “feito”, lendo-a. Seria sempre uma pálida réplica, uma cópia imperfeita da viagem total: todas as páginas, todas as linhas do guia… E os relatos, em cada regresso, eram, para Mariana, uma consagração: o mundo era devolvido ao oráculo, e encaixava nele — nela — porque dele havia saído.
- Aí tem o Muro. Quilómetro e meio de folclore, neste sítio, ao longo do rio Spree.
Mariana falava, agora, com alguma rispidez. Parou o táxi (em frente a um painel inconfundível do pintor-ilustrador Jim Avignon).
- O Jim tem outro painel em Hackescher Markt, numa das poucas paredes que resistiu ao novo-riquismo do Hackescher Hof. É numa passagem que dá para um bar com monstros mecânicos. Os monstros são feitos pelo dono do bar. Tem uma cave cheia deles.
A taxista ficou a olhar os bonecos desengonçados no Muro. Estranha construção, neste ponto: longa e mais baixa do que parece nas imagens de Berlim durante a guerra fria.
- Berlim é uma cidade enorme. É muito fácil perder um amigo aqui.
Já foi há alguns anos, contou-me Mariana com as mãos e o queixo no volante. O amigo em causa era um dos seus guias preferidos. Um guia de Berlim.
- O guia Baedecker de Berlim. Ele era tudo o que se pode exigir de um bom amigo: “Prático, fiável e divertido” — enfim, era o que dizia na capa.
O que Mariana gostava nesse guia era a profusão de fotografias, a facilidade de consulta, as anotações à margem e outros detalhes típicos dos guias Baedecker, como a classificação de uma ou duas estrelas para os hotéis, restaurantes ou monumentos imprescindíveis.
- Era um guia de fácil comunicação. Nem sempre é o caso.
Fácil de perder, também. Um casal, a quem Mariana emprestou o seu fiel guia de Berlim, esqueceu-se dele no hotel, o Seehof Berlin,
- Em Charlottenburg, sobre o lago de Lietzensee. Esteve lá a Josephine Baker. O Peter Ustinov também.
Drama, a perda de um guia. Não havia horror maior para Mariana do que sair da sua cidade. Era uma ideia insuportável. Mas igualmente atroz era pensar no seu guia, esquecido em Berlim, à mercê de desconhecidos, de gente ignorante
- Sim, ignorantes!
que, na presunção de conhecerem a cidade, desprezam e descuidam um bom guia de papel. Alguns dias foram consumidos em angústia. Por fim, Mariana tomou a decisão inevitável: iria a Berlim resgatar o seu amigo.
- Aí tem. Aqui estou. Quer fotografar o Muro ou não? Não tarda, cai o sol.
Encontrou-o, afinal?
- Quem?
Ora quem, Mariana: o seu guia. O seu amigo.
- Não interessa. O meu amigo enganou-me. Dá uma “estrela” ao Seehof Berlin e o hotel não merece essa distinção.
Saí do táxi e caminhei um pouco ao longo do Muro. Fotografei alguns painéis. O meu favorito é o painel com o líder da URSS, Brejnev, de boca colada à do líder da RDA, Honecker.
- Também gosta desse beijo frio?
Voltei ao táxi e pedi que continuássemos por onde ela quisesse. Rolámos pela cidade. Instalou-se a noite.
- Berlim é uma prisão muito grande.…
Percebi o que ela quis dizer: veio e ficou. Mariana não viaja. Nunca viajou.
Da boca de Mariana saía o mundo. Uma torrente de mundo.
Por exemplo: a noite de Berlim levantou-se da boca calada de Mariana.
Texto do Tapornumporco