Ontem dava por mim a ler o livro Espaços Perdidos, Coimbra e a pensar o que teria acontecido desde então para que os cafés deixassem de ser os espaços de calorosas discussões entre os estudantes. Não há, pelo menos para os alunos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), um'A Brasileira ou um Arcádia. Mas talvez isso tenha uma explicação: o facto de a Faculdade ter um bar incorporado.
Acho que ninguém sabe muito bem o nome do bar em que o grupo se encontra sempre que tem aulas. "Bar do Sr. Carlos", "Bar da Feuc" ou simplesmente "Bar" são os nomes não oficiais. O oficial é coisa que não interessa para os relatos...
Estamos no ano de 2011, último ano do curso para o grupo que havia de dar forma a um dos carros do curso de Gestão deste ano. Quem chega à faculdade, mesmo que atrasado para as aulas, costuma subir as escadas e dar uma espreitadela ao grupo que se encontra no bar àquela hora. Se for de manhã é vulgar ver o Jorge na varanda a tomar o seu café, impaciente por se ter sentido obrigado a acompanhar a namorada, Carolina, em mais uma aula de madrugada. Obviamente que não pode entrar logo às 8h da manhã, razão pela qual faz o seu pequeno intervalo para repor energias. É um pouco mais tarde que o grupo se começa a compor.
A Sara, a Carolina, o Jorge, a Sequeira, as Beas, a Carla, a Mariana são quase sempre das primeiras pessoas a dar forma ao grupo, embora por razões diferentes. Os elementos femininos porque não se deixam seduzir pelos lençóis e se conseguem levantar da cama para enfrentar as duríssimas aulas da manhã. O elemento masculino, porque - para mal dos seus pecados - tem de acompanhar o seu par...
Não seria justo para ninguém se não se referisse que, durante este semestre, também eu sou sempre dos primeiros a chegar. Não seria MESMO justo que não se referisse a disciplina mais conhecida no seio do grupo: Sociedade Portuguesa Contemporânea, com aulas na Quinta e Sexta-Feira às 8 horas da manhã. Não pensem que ela se tornou famosa por ser do interesse do pessoal. Não. O que acontece é que só eu é que a escolhi - sim, sou mesmo a única pessoa do meu curso a fazê-la - e, perante o horário, é inevitável que o pessoal me moa a cabeça com isso...
Ou seja, é raro ver, de manhã, o grupo todo reunido. Mais: é até bastante raro ver o grupo todo reunido. O dia em que isso costuma acontecer é às Terças-Feiras, quando o pessoal tem aulas das 8 da manhã às 8 da noite. Dia cansativo, hem?
Pois ele começa como de costume. O grupo da manhã vai-se compondo - nestes dias juntam-se, aos já referidos, o Pê, a Inês, o Barreto, o Pedro Costa, o Janeiro, a Rita, a Ana Isabel, a Marta, a Íris (muito de vez em quando), a Sofia, o Digas, o Paulo, a Catarina, o Ventura... até que atinge o seu auge por volta das 14 horas, já com o almoço tomado.
É por essa hora que o grupo começa a ganhar alma. Com a chegada do Pipo, do Mica, do Carlos, do Chefe Leal e do Duarte - que são contra qualquer aula antes das duas da tarde - começa o grupo benfiquista a formar-se. Chegam também o Adriano e o Avé, do contingente sportinguista. Ah, claro, e O Político Chico Có, a cantar pelo seu "Mágico Braga".
Quando estes se encontram reunidos é vulgar surgir uma onda de terror. Está, por vezes, a conversa bastante animada, quando se vê, ainda ao longe, um enorme dossier com pernas a surgir nas escadas. O pânico é instantâneo. As pessoas dispersam, fazem-se distraídas, tentam sair às escondidas... todas as estratégias já foram tentadas. É que por trás do dossier está a Sequeira, que é tesoureira do carro da Queima. E neste grupo estão os maiores fornecedores do mesmo, tal é a quantidade de multas por atraso nos pagamentos que acumularam.
Mas todos eles acabam por ceder. É que as aulas já recomeçaram e mais vale voltar ao bar e pagar mais uma multa, do que entrar naquela coisa horrível a que chamam "sala de aula". Fica então quase completo o clã do futebol. Mas a discussão não começa sem uma música solenemente cantada a plenos pulmões, que anuncia a chegada do Pedro e que deixa um bar cheio de gente em silêncio a olhar com ar escandalizado para os colegas mal-educados que já nele se sentem como em sua casa:
PEDRO MARQUES BELÍSSIMO!
PEDRO MARQUES FANTÁSTICO!
ÉS A NOSSA FÉ!
PEDRO MARQUES ALÉ!!!
Estão compostas as equipas: eu, Pipo, Duarte, Mica, Ventura Leal e Carlitos, pelo Benfica; Adriano, Avé e Barreto, pelo Anti-Benfica; Pedro Marques, Pê e Digas, pelo Porto; e o Chico Có Político, pelo Braga. O penalty que foi e o que não foi, o árbitro que é super-dragão, o Xistra, o Olegário, o Falcao, o Hulk, o Cardozo, o Roberto, o Zbordém (essa é a fase em que o pessoal relaxa e se ri um bocadinho)... os temas da actualidade desportiva são avaliados jogada a jogada, com as repetições imaginárias dos lances a acalentarem discussões bem acesas. Está lançado o mote para uma tarde de aulas bem passada...
Quando o tema deixa de ser futebol entram em acção o Pipo e o Carlos. O Pipo é mais exuberante, o Carlos mais discreto - embora certeiro, mesmo mortífero nos comentários que faz. O Digas não se faz rogado e entra na conversa com a sua análise do significado do desvio de um olhar ou de um cruzar de pernas. É que ele é "como o professor de Estratégia: não anda nesta vida só por andar!".
Já a tarde vai longa quando eis que aparece, no seu único dia de aulas semanal, o grande Boy, orgulho de todo um curso. Famoso pelos belíssimos cozinhados que faz em tachos de primeiríssima qualidade, é recebido com mais um caloroso aplauso, que deixa todo o bar mais uma vez escandalizado com a falta de educação daquela gente. Não raro ouve-se a música O BOY NA DG, agradecida pela personagem principal da mesma com os braços no ar e um V triunfante feito com os dedos.
Com a presença dos três grandes políticos do grupo (Chefe Leal, Chico Có Político e Boy) o tema passa para a política. Aí o divertimento habitual é bater no Sócrates e em toda a porcaria que fez nos seus anos de Primeiro-Ministro. Como bater numa pessoa que não está lá deixa de ser divertido, tudo se faz para trazer o Jorge para a conversa e aproveitar para lhe moer a cabeça por causa do argumento "ele é mau mas os outros são piores".
As 18 horas aproximam-se e o pessoal começa a dispersar. É que a essa aula não se pode mesmo faltar. Quem a não tem vai para casa descansar e preparar-se para a noite que se aproxima, quem a tem vai ter de a gramar. E é com sonoros lamentos do Pê a dizer "que dia puxado, hoje", que todos entramos, cabisbaixos, no Anfiteatro 2.2...
Nota: Pela primeira vez na história do VaiPaSelva são utilizados os nomes reais dos intervenientes. Mas num texto que pretende gravar para a posteridade três anos de curso com enormes discussões à mistura, esta homenagem tornou-se essencial.