sábado, 18 de setembro de 2010

Bob, a vida depois da morte...

Nota: Este texto é escrito na perspectiva de Bob, saxofonista que conheci na Praia de Ipanema num fim de tarde, a olhar para o Morro Dois Irmãos. Contou-me a sua história. Eu reproduzo-a aqui, como se ele vos estivesse a contar, também a vocês, como a sua vida se tornou no que é hoje...

Chamo-me Bob. Na verdade esse não é o meu nome. Chamam-me assim desde que ressuscitei, por causa das rastas. O nome antigo? Já não me lembro. Nem quero lembrar...

Nasci no Rio de Janeiro, sou o verdadeiro Carioca. Tinha uma vida humilde, mas honesta e feliz. Vivia com meus pais - ele arranjava frigoríficos e ela era empregada doméstica. Tenho muitas boas recordações dessa altura: lembro-me, principalmente, de ir ver os jogos do Botafogo com meu pai.

Quando queria ir era simples: dizia à minha mãe que ia. Ela, como tinha medo que eu, com 12 anos, fosse sozinho, pedia a meu pai para me convidar e fazer de conta que não sabia que eu queria ir. Aí, eu fazia um ar espantado, entusiasmado e fazia de conta que não sabia que tinha sido a minha mãe a pedir. Mal ela sabia que aquilo de que eu gostava mesmo era de ir com o meu pai e que só dizia que ia sozinho para ela lhe pedir para ele ir comigo...

Dava-me muito bem com meu pai. Tinha sido ele, também, a ensinar-me a tocar saxofone. Era muito bom naquilo. E gostava muito...

Enfim, vivia feliz. Até ao dia em que minha mãe morreu, com um problema no cérebro. Tinha eu 14 anos. E dois meses mais tarde morreu meu pai, assim do nada. Deus não foi justo comigo. Nada fiz para merecer ficar órfão tão cedo, num tão curto espaço de tempo e sem que nada o fizesse prever...

Nessa altura apareceu na minha vida uma menina encantadora. Seu nome era Creuza e vivia na Bahia, em Trancoso, bem mais para o norte do Brasil. Tinha mais dois anos que eu. Conheci-a na praia, no dia da morte de meu pai. Ela me pegou a chorar e conversou comigo. Deu-me a mão e a força de que eu precisava para resistir.

Ela tinha vindo viver para o Rio com seus pais. Tornou-se uma amiga muito especial. Só passados 2 anos, aos meus 16, começámos a namorar. Durante esse período, os pais dela me ajudavam, por vezes até me davam dinheiro. Foram eles que me deram o primeiro emprego, tinha eu 15 anos.

Penso que ganhava mais do que merecia. Tinham uma loja de roupa e eu ajudava-os em tudo o que podia. Devo-lhes muito. Se não fossem eles teria morrido de fome naquele preciso momento. Mas com o tempo fui crescendo e acabei por ser promovido a gerente da loja, aos 18 anos. Eu tinha tudo: confiavam em mim, era jovem, ambicioso, estava-lhes eternamente grato e tinha aprendido tudo sobre aquele trabalho durante os 3 anos em que trabalhara com eles na loja.

Confiavam em mim de tal maneira que me deixaram à frente da loja enquanto voltaram, com a Creuza, para Trancoso (já eu tinha 20 anos, por essa altura). Queriam abrir uma filial lá, mas sendo o nordeste brasileiro  - bem menos desenvolvido - precisavam de gente com experiência. A ideia era irem a Creuza e os pais dela numa primeira fase, para tratarem de toda a inauguração da loja, e depois eu seria eu a mudar-me para lá definitivamente.

Concordei com a proposta. Afinal de contas nada me prendia ao Rio a não ser as pessoas que amava. Foi nessa altura, em Janeiro, que eu pedi Creuza em casamento. Ela disse que sim. Tínhamos já anel de compromisso e data marcada para o casamento, em Junho. Eu ficaria no Rio de Janeiro sozinho apenas de Janeiro até Junho, depois chegava a Trancoso e instalava-me definitivamente.

Sabe quando a sua vida começa a ganhar o rumo dos seus sonhos? Emprego fixo, seguro e num alto cargo, dinheiro amealhado para cumprir seus projectos, casamento marcado com a mulher de sua vida...

Pelo meio meteu-se o Carnaval. Eu estava no Rio e vivi-o simplesmente com saudade de Creuza. Contava os dias que faltavam até àquele que seria o mais feliz da minha vida.

Acontece que depois desse Carnaval, a Creuza me liga e acaba tudo comigo. Não me deu nenhuma explicação. Vim a saber, mais tarde, que as amigas lhe tinham metido na cabeça tudo de mau sobre mim. Aí, ela começou a sair com um cara (que mais tarde foi preso e que, enquanto andava com ela, engravidou outra menina) e achou que era melhor ficar com ele.

Aí eu morri. Todos os sonhos, todos os planos de uma vida tinham se desmoronado.

Larguei a empresa (apesar de meus ex-sogros não quererem) e meti-me na droga. Dos 21 aos 22 anos eu penava pelas ruas, sem saber onde era minha casa nem o que fazia neste mundo. Até ao dia em que um cara vem me falar...

Perguntou-me porque estava eu naquele estado e dormindo na praia. Contei-lhe minha história e o cara me perguntou se não havia nada que eu conseguisse fazer bem. Eu disse, inicialmente, que não. Depois falei-lhe em tocar saxofone...

"É isso que vai mudar sua vida. Vai tocar saxofone nas ruas e, graças às suas rastas, passará a chamar-se Bob - como o Marley!" - disse-me. Torci o nariz e até o tratei mal. Mas aquilo entrou em minha cabeça. 

Demorei uns tempos para largar a droga. Mas só o consegui graças ao sax. Desde os meus 22 anos que me pode encontrar algures pelas ruas do Rio de Janeiro a tocar saxofone. Hoje tenho 34. Não ganho muito dinheiro, mas é o suficiente para me fazer viver - sim, viver (e não sobreviver).

E aqui tenho uma praia linda, um pôr-do-sol fantástico e a alegria de um povo que só sabe sorrir. E mais: eu próprio sinto que os faço sorrir, porque um bom carioca não evita sambar nem que seja ao som de um saxofone que se ouve na rua. 

Já me convidaram para ir tocar em grupos. Mas eu digo sempre que não. Para quê criar expectativas? Vivo de forma simples mas feliz: ressuscitei após uma morte lenta e dolorosa. Quando somos novos, os sonhos são altos; a vida vai-nos ensinando a torná-los mais modestos.

Hoje eu vivo um sonho: toco p'ra quem quiser ouvir, vivo de quem quiser pagar. Mas vivo sem ilusões e a disfrutar de cada raio de sol, de cada banho no mar, de cada nota de música. Cada uma destas pequenas coisas me fazem viver um sonho.

Um sonho que ninguém pode destruir.

3 comentários:

Kafka disse...

Arrepia ...

Asus disse...

Continuo a dizer que és dos melhores escritores deste tipo de texto que tenho lido.

Arrepiante!

Titi disse...

e uma historia mt dura..i acho q o senhor n merecia isso..ms tb acho q o senhor deve continuar a sonhar i a criar expectativas i passar esse seu obstaculo psicologico.. parece-m mt bem q entre em grupos d musica..smp vai arranjar mais algum pa viver mlhr a vida..i n precisa d deixar d desfrutar cda raio de sol..

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