Canela rasgada, pé esfolado, corpo dorido, respiração ofegante, sorriso nos lábios e brilhozinho nos olhos. Eis como cheguei a casa.
Fui jogar futebol à tarde e à noite, com dois grupos diferentes e, em ambos, fosse pela minha estrondosa qualidade, fosse simplesmente pela nacionalidade, deixei de ter o meu nome. De hoje em diante serei Deco, em terras de Vera Cruz...
Só por si já seria motivo de orgulho. Houve golos e muita magia. Mas o melhor de todos marquei-o fora do campo...
O grupo da noite reúne-se todas as Sextas-Feiras na Praia de Ipanema. É composto por gente com pós-graduação, por meros trabalhadores, por moleques de rua e outros de favela. A faixa etária vai dos 8 aos 30 anos e a altura do metro e meio aos dois metros. Enfim, o Brasil no seu melhor. A convivência entre ricos e pobres, velhos e novos; todos eles reunidos à volta de uma bola de futebol...
Por ser português é natural que desperte a curiosidade dos moleques. Estava sentado a falar com o Filipe e o Rafael, ambos com 21 anos, e eis que aparecem 4 moleques e se sentam à nossa volta:
- Pô, esse cara é mesmo burro. 'Tá em Portugal e vem p'ró Brasil viver?!
Falava de mim, o miúdo. Lá lhes expliquei que talvez não fosse assim tão mau viver no Brasil, um país em que, desde que estudes, tens inúmeras possibilidades. Contei-lhes que Portugal estava mal, com muito desemprego e que se calhar era melhor viver num país no qual têm a garantia de que se trabalharem conseguem arranjar um emprego, do que noutro em que mesmo que passem a vida a estudar se arriscam a acabar num balcão do McDonalds.
Era a nossa vez de jogar. Cá fora ficavam alguns moleques a "brincar à porrada", rebolando no chão e sufocando-se uns aos outros. Quando voltámos cá para fora estava um doeles a chorar convulsivamente.
O Filipe perguntou-lhe o que se passava e ele explicou, entre os soluços, a baba e o ranho, que o amigo lhe tinha tirado as chaves do porta-chaves e depois as tinha perdido.
- Vou ficar de castigo um mês! Hoje só vou poder ir para casa às 7, porque não tenho chave para entrar. E na Segunda, quando vier da Escola meu pai vai me dar tanta porrada...
Todos os que estavam de fora procuraram as chaves. À noite e numa praia tão grande era impossível encontrá-las... Desistimos.
- Vai ter de apanhar com as consequências... - disseram-lhe.
E o moleque chorava mais e mais. Garoto de favela. Olhar perdido de medo. Sem sítio para dormir, provavelmente mais por medo de voltar para casa, do que por não ter ninguém para lhe abrir a porta, tal como dizia...
Chamei-o e falei com ele:
- Um dia estava eu a comprar umas coisas e fiz mal as contas aos preços. Não tinha dinheiro para pagar tudo. Ia voltar a meter as coisas na prateleira quando uma senhora me agarra e diz: "deixa que eu pago. Só quero que me prometas que se algum dia vires alguém numa situação semelhante fazes o mesmo". Portanto diz-me lá, quanto é que custam umas chaves novas?
- 3 ou 4 reais...
- Então relaxa que eu dou-te dinheiro para as chaves. Acredita que não sou rico, tenho passado o tempo a comer atum para poupar dinheiro. Mas acho que estes 5 reais te darão muito mais jeito a ti do que a mim, até porque posso perfeitamente ficar sem comer durante uma refeição. O que te peço é que se algum dia alguém precisar tu o ajudes também. E que acredites que há pessoas boas no mundo, que não há só a corrupção e a violência que todos os dias ouves e vês aqui no Rio. Prometes-me?
Acenou com a cabeça, ainda com a cara molhada das lágrimas. O espanto dele era imenso. Contou ao Filipe e ao Rafael, que tinham estado a falar comigo e eles vieram-me perguntar:
- Porque é que fizeste isso? Estávamos aqui 20 pessoas e ninguém pôs essa hipótese...
- Chama-me maluco, mas eu ainda acredito num mundo em que um pequeno gesto pode mudar a vida de alguém. É menos uma lata de atum que compro e é um miúdo que não vai apanhar uma malha quando chegar a casa. Se de entre estes 10/15 moleques que aqui estão houver um a ficar sensibilizado com o acto, já terei feito bem mais do que poderia desejar em 5 meses no Rio...
O Filipe, o Rafael e o Marcel vivem bem perto de mim. Vieram os 3 mais o tal moleque das chaves comigo e esperaram na praia, perto de minha casa. Fui buscar o dinheiro e entreguei ao moleque. Despedi-me e, juro, vi uma pontinha de emoção naqueles olhares.
Eu próprio cheguei a casa feliz. Tinha cumprido uma promessa feita durante uma visita de estudo no meu sexto ano. E, mais do que isso, tinha encontrado o Rio que existe para lá da noite, do sexo e da maconha...
[História real.
Não teria imaginação
para inventar uma assim...]
5 comentários:
acredito plenamente que seja bem real a história, é a tua cara e mostra bem como és. Diverte-te por aí Deco.
Assino por baixo do El Gordo! Grande abraço miudo
O objectivo não era dizer bem do meu próprio acto, mas sim mostrar a realidade diferente de dois países tão unidos na cultura.
O desespero do moleque era impressionante. E tudo por ter perdido uma chave...
A diferença que 5 reais (2 euros e pouco) fazem na vida desta gente é assustadora...
E eu até já estou farto de atum :)
Mau
:)
Conta melhor a primeira história, Mau, pode ser aqui mesmo, nos comentários.
Essa história (da excursão do
6º ano) já me guiou vários gestos apesar de nunca ter dito em voz alto o tal - "agradece fazendo o mesmo por outro" (é mais difícil de dizer do que parece).
Será que a senhora tinha visto o filme "favores em cadeia"? Seria simplesmente uma mulher inspirada?
Seja como for, tinha razão. Se assim não se muda o mundo, pelos menos nós próprios mudamos para um bocadinho melhor.
O teu Rio continua lindo, Mau :)
G.
msm batoteiro.. e so assim q jogas n e?? a marcar golos fora do campo.. é apito dourad d certeza..
foi um gesto bonito sim senhor.. nao muda radicalmente a mentalidade daquela gente tda mais concerteza vai ficar alguma coisa naquela cabecinha do miudo..
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